Moela de Frango

Juliana cajives
Revista Mormaço
Published in
4 min readJun 11, 2021

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Fotografia mortuoria — autor desconhecido (https://www.theclinic.cl/2012/09/30/postmortem-las-inquietantes-fotos-a-los-muertos/)

Era divino ver vovó lapidar o formato fofo, cheio de penas e sangue, até imitar a figura dos supermercados, que ficavam depois da estrada de terra e mais um pouco de asfalto. A escultura saía impecável, num amarelo esbranquiçado, a caminho do dourado. Isso depois de vovô ter escolhido o método: com faca ou torção no pescoço. Cada um na roça tem arbítrio sobre sua maneira de matar galinha.

Eu assistia do alpendre, um degrau mais alto que a área aberta de cimento. Havia, perpendicular, uma continuação do alpendre que também formava essa relação de nível. Em todo natal, a família sentava nesses degraus e assistia a algum discurso, fazia uma oração ou via a apresentação das crianças na área mais baixa de cimento. Nesse anfiteatro desavisado, meu avô executava os banquetes: frangos, carneiros, porcos ou caças do mato. Apenas as vacas tinham outro lugar de sacrifício, para lá do curral, para lá dos olhos que se impressionam com morte de bicho grande.

Vendo lá de cima meu avô na arena optar pela torção, duelavam em mim as sensações: o divertimento de ver o show particular daquele palhaço pulando pra todo lado e soltando penas até desistir brigava com a culpa e a compaixão pelo sofrimento não só daquele, mas de todos os seres que, havia acabado de descobrir, sofrem.

De todo modo, me doía e fascinava a agonia do frango. Não de um jeito sádico, mas porque tentava descobrir o que era vida e morte e imaginava, naquele momento em que o animal mais saltava, encontrar a exata separação de uma e outra. Morrer e dançar um balé que, em vida, era impossível. Deveria ser esse o verbo que completa o elo.

Ainda desbravando, buscava nas partes mortas a tal prova. Parecia fantasia a possibilidade de saírem cores daquele monte de sangue e órgãos. Tão parecido com o meu corpo (pois, naquela baixura da vida, já havia cortado dedos e arrancado tampões de pé o suficiente pra me realizar da semelhança) sem graça alguma, feio e produzia apenas excrementos de risco à saúde (não podia tocar nas fezes e urinas, pois os germes e vermes…). Era incrível que pudesse sair daquele corpo ali, espelho do meu, a bile de um verde que nem tinta ou folha alcançam. Os ovos não botados pareciam planetas numa órbita molhada. Me surpreendia que coisas tão especiais não estivessem exclusivas à televisão ou a algo que apenas alguém muito distante poderia fazer.

Mas nos esquemas de planetas dos livros escolares, eu jamais havia encontrado brilho de força estelar que se aproximasse da moela. Um disco duro, que esperava a incidência da luz pra decidir se seria roxo, azul, vermelho e, a cada raio diferente em alguma parte, mudava de ideia. Minha ansiedade não me deixava sossegar. Avó dizia pra quietar, e eu de fato queria obedecê-la, mas o corpo insistia em se pendurar no tanque, colocar o dedo pelo couro escaldado, ver o olho. Tudo saía como a anatomia promete. Os intestinos iam sendo jogados numa bacia, de alguma forma o cachorro aliava forças comigo. Ao sair a moela, avó parava tudo, me mostrava as cores e falava do serviço que aquele vinil prestava em seu funcionamento naquele organismo.

Moela é o saco de lixo do frango, dizia, assim como meu apêndice. Não parece possível eu ter algo tão colorido dentro de mim. Mas se as galinhas têm e se é possível ver o cristal do olho do bode, talvez eu tenha não só sangue e possa saltar um balé inimaginável quando morrer. Entreter alguém, nem que seja só com um osso da sorte. Mas me amedrontava saber que, ao morrer, todos se juntariam à minha volta, eu deitaria cheia de folhas e cheiros, fariam orações calorosas e estariam prontos para alguma coisa depois.

Gente não parece poder morrer em balé, não parece poder ficar aberta. Me assustou morrer, não pela morte, mas por ter visto gente morta sem a moela exposta, sem planetário homenageado. Quando a Tida, mulher da chácara vizinha, morreu, deitaram ela na mesa da sala, tiravam foto do corpo que sempre conheceram, com renda, como ela sempre usou, e choravam por Tida, mesmo sem tê-la visto no avesso.

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