Diário de 30/07/2020

Juliana cajives
2 min readApr 5, 2022

--

Os bares cheios vão despejando líquido no mundo. Suor, saliva, lágrima, cerveja, urina e o sangue. Os banheiros do mundo desaguam onde quer que seja (não é importante para os banheiros e sim para o mundo fora deles, cheio de pessoas, de espaço poluível). Os papéis, nem sempre disponíveis, absorvem tinta, suor, saliva, lágrima, urina e o sangue.

No tempo que tenho tido pra pensar e me hidratar, resolvi listar na mente as coisas que não vejo mais agora, que só vejo o quadrado da varanda. Num salto, notei que sinto falta de me encontrar com os sinais de úteros, ovários, corrimentos, gozo. Explico: na minha vida de bares, de escola, de pessoa que sai, tomei o costume de tentar colecionar na memória as manchas vermelhas nos banheiros públicos. Todo banheiro em todo momento sempre terá uma mancha vermelha, seja num papel exposto no cesto, seja numa gota que caiu na borda do vaso ou no chão. E mais interessante é que hoje posso perceber que à medida em que fui encontrando os espaços onde me sinto mais confortável, foram aumentando os encontros com os vermelhos. Os lugares que me acolhem autorizam o passeio dos vermelhos.

Os vermelhos são uma cosmologia particular dos corpos que menstruam. Vejo as manchas e recebo uma forma de comunicação, um recado de embriaguez, de conforto, de protesto. Vejo também quem recebe outros discursos: desleixo, sujeira, falta de educação.

No bar lotado, rebolava por entre as mesas pesadas até chegar ao banheiro. Na universidade, percorria o câmpus a caminho da unidade que possui o meu banheiro preferido. No bar, tranco a porta ou faço a vez da tranca — na Universidade é quase regra — e dentro da cabine me seguro de um jeito que não vai se encostar em nenhum vestígio úmido. Ali, exercito nas pernas a consciência de compartilhamento. Mas é quando vejo a prova deixada, a mancha vermelha, o absorvente jogado, o cesto escancarado; enlevada, coleto a imagem.

Nunca tive amigas com quem compartilhasse as intimidades do corpo no corpo. Sempre foi em relatos, numa trama de literaturas dos corpos de cada pessoa, nas regras de assepsia, nas certezas como casca de dúvidas. Dúvida é bom: “se ela faz assim em banheiro público, imagina em casa!”, diz a moça no lavatório com um olho se delineando no espelho e o outro na cabine ensanguentada. A casa então guarda a incerteza, mas o banheiro público deixa correr soltos os encontros das dúvidas. Se o lar guarda quem menstrua e quem menstrua deve se guardar, guardar o sangue, ao sair da guarda tudo pode virar um rio; afluentes.

Sinto falta então de tudo desguardado, desses encontros com os rios das outras. Estão agora todas no lar da minha dúvida: como estão menstruando? Estão guardando, regando plantas, deixando correr, escondendo? A saudade agora é de ver a estrutura de uma sociedade muito específica que formamos na latrina. Saudade desse encontro embriagado de umidades.

--

--